Disciplina x Medicação: a grande questão na modificação comportamental de cães.

Há alguns anos eu venho notando um aumento significativo de cães usando medicamentos fortes como possíveis soluções de problemas de comportamento. Nesses casos a sugestão do medicamento, muitas vezes vem de profissionais que trabalham na área de comportamento canino. Esse aumento de gráfico está paralelamente proporcional à explosão do marketing que sugere o adestramento puramente positivo. Tendo tudo isso em vista, resolvi escrever esse texto para esclarecer alguns pontos importantes.

Primeiro acho que é importante mencionar esse paralelo entre o adestramento puramente positivo e a inclusão de remédios no processo de modificação comportamental. Acho que qualquer pessoa pode identificar um elemento chave aqui nessa equação: a falta de correção gera uma nova necessidade de contenção relativa ao comportamento negativo, e assim entram os remédios. O grande paradigma aqui seria, como interpretar esse tipo de tratamento como menos invasivo do que um treinamento que envolve a devida aplicação de correção? Será que uma correção, que dura em média 1-3 segundos, é mais traumática do que um remédio que fica atuando no organismo no animal por horas ou até dias?

Ao longo dos anos, trabalhando com diferentes cães e famílias, eu pude notar como existe um conceito distorcido, sendo altamente vendido no mercado, em relação ao tratamento de cães. Tudo que envolve disciplina foi absolutamente transformado em terror e os cães se tornaram a grande projeção da fragilidade humana. Não é à toa que nunca tivemos tantos casos graves de brigas entre cães da mesma casa, cães que atacam pessoas, cães que atacam outros cães, cães que destroem as casas e etc. Os sinais são claros: quanto menos disciplina, maior se tornam os problemas de comportamento.

Infelizmente muitos novos profissionais compraram essa idéia e entraram no mercado acreditando que poderiam trabalhar tranquilamente dentro dessa filosofia. Muitos deles, antes do que esperavam, se depararam com o cenário real e viram, em primeiro mão, como a falta de disciplina pode nos colocar em cenários muitas vezes bem perigosos. Essa realização traz uma enorme frustração para aqueles que querem de fato ajudar famílias e seus cães. Eu vejo isso diariamente nas mensagens que recebo de profissionais bacanas que não conseguem evoluir com seus clientes por conta dessa barreira.

Parte desse grupo procura ajuda, e é nesse momento que muitos se deparam com a comunidade que rapidamente sugere que o cão precisa ser medicado. Isso é muito perigoso. Muitos desses casos são de cães que apresentam reatividade em situações diversas, comportamento possessivo ou territorial, entre outros. Esse tipo de comportamento é mais do que comum em cães que vivem num contexto sem disciplina e nunca foram de fato corrigidos por agir de forma errada. Muitos desses cães também nunca tiveram um treinamento voltado para a vida doméstica e social ideal, e simplesmente vivem uma vida de constante permissividade. Tendo isso em mente, avaliem, como o resultado poderia ser diferente?

Agora começa a ficar um pouco mais fácil entender porque a indicação de medicamentos ficou tão em alta nos dias de hoje, especialmente dentro da comunidade que advoga pelo treino puramente positivo. Sem direção, sem disciplina e sem correção, qual opção sobra para resolver o problema? Pois é.

Eu quero deixar claro aqui que não sou veterinária, e em momento algum atravesso o limite da minha profissão. Eu aprecio demais a classe e tenho grandes amigos na área. O meu ponto aqui é simples. Antes de medicar um cachorro por problemas de comportamento, é essencial avaliar o básico. Como esse cachorro vive, como é a dinâmica da casa, quais são os hábitos da família com o cão, quais são as regras e como elas são passadas para o cão? Existe uma comunicação clara com o animal? Essa cão já passou por algum tipo de treinamento? Como o treinamento aconteceu e quem conduziu e de forma? Que tipo de equipamentos de treinamento foram usados e como? Existe alguém da família dedicado à educação desse cão? Como todo esse processo está sendo feito?

Vejam que não é apenas falar em correção, mas avaliar o todo. Disciplina precisa fazer parte da vida e correção é uma parte essencial desse processo. Direção e organização de rotina é outro ponto primordial. Não é realista esperar que vamos nos livrar dos problemas de comportamento de nossos cães sem mudar nada em nossa rotina e na nossa carga de responsabilidades. Incluir o cachorro na nossa lista de responsabilidades diárias é muito mais do que alimentar e prover um lugar bacana para o cachorro dormir. É criar atividades diárias educativas, aonde o cão aprenda e pratique todos os dias o que é certo e tenha oportunidades de errar, e ser corrigido, de forma correta, para que possa de fato aprender. São essas mudanças diárias que fazem a diferença.

Eu acredito que medicar cães, sem tentar aplicar as regras básicas primeiro, é injusto. É colocar o animal num estado cognitivo de desvantagem aonde todo o processo de aprendizado fica comprometido. É empurrar a sujeira para debaixo do tapete para não ter que lidar com o problema de verdade. É o caminho mais fácil, mais curto e a escolha que menos exige de nós. Modificação comportamental é um desafio sim, mas um que traz um enorme aprendizado, especialmente para nós humanos. Todos que tem cães nessa condição, quando passam por um treinamento bacana, apreciam imensamente as mudanças que vem durante o processo. É quando nós, os seres humanos, aprendemos a assumir responsabilidades, e desfrutamos dos benefícios que elas trazem. É quando deixamos para trás as desculpas, as justificativas, as fraquezas e as emoções e passamos a enxergar o mundo de uma maneira mais simples e eficaz. É quando nos tornamos mais fortes e passamos mais segurança para nossos cães. É quando realmente criamos com eles a relação mais forte, para a vida.

Meu resumo final aqui é simples; não faça do medicamento um substituto da disciplina. Revise a vida que você leva com seu cão, avalie cada detalhes desde a hora que você acorda até a hora de dormir. Veja quantas oportunidades ao longo do dia você tem para educar seu cão. Observe aonde o comportamento negativo se apresenta, e com bom senso, pense como você pode evitar ou interromper essa manifestação. Não estamos falando de nenhuma ciência complexa. É aplicação de bom senso e lógica.

Lembre quando você era criança e como seus pais te educaram. Lembre como aprendeu a olhar para os lados antes de atravessar a rua. Lembre como você aprendeu a fazer amigos. Lembre como você aprendeu a não brincar com fogo. Lembre do que acontecia na escola quando você fazia alguma coisa errada. Agora veja que a diferença entre crianças e cães é grande. Somos espécies distintas e não falamos a mesma língua. Você não pode conversar com seu cão e convence-lo a fazer o certo. Você precisa materializar, ou seja, fazer acontecer. É justamente aí que está a comunicação, no engajamento educativo aonde entra a constante direção. No momento adequado vai entrar a correção, mas boa parte do seu dia com seu cachorro depende de direção. Vale a reflexão.