As emoções humanas, a projeção e o novo mercado se forma às custas dos cães.

Navegando pela internet em busca de informações, não tem como não se chocar ao ver a quantidade de anúncios e chamadas disponíveis que apelam para o lado mais emotivo do ser humano, especialmente no que diz respeito à produtos e serviços para cães. Eu poderia dizer que 98% desse conteúdo é criado pensando em atingir o público no seu lugar mais delicado, a emoção.

Depois de muito anos trabalhando nessa área, e estudando diversos assuntos incluindo marketing e psicologia humana, eu posso dizer que existe muita gente lucrando bastante com esse tipo de apelo. O processo acontece de forma homeopática, trabalhando a fragilidade humana em vários aspectos, e eventualmente transferindo todo esse conceito para os cães, que se tornam as vítimas. É triste de ver mas é real. Esse é o mercado dessa categoria aonde se vendem ilusões em troca de aceitação.

As palavras e frases são sugestivas, e o conceito de correção e aplicação correta de regras, disciplina e limites é quase que inexistente. Toda a ênfase é colocada em termos como amor, carinho, sem broncas, método positivo, e etc. Tudo isso remete o ser humano à uma sensação de conforto, aonde ele é absolvido da idéia de responsabilidade real, e encontra todas as soluções para os problemas de seus cães sem precisar, de fato, assumir o seu papel mais desafiador, o de liderança.

Para entender como chegamos até aqui, é importante entender o real conceito da palavra propaganda. Para aqueles interessados em história, eu recomendo a leitura de um livro publicado em 1928 chamado Propaganda, escrito por Edward L. Bernays. Nesse livro ele elabora sobre as estratégias que hoje são conhecidas como marketing, que na época eram definidas como métodos de manipulação de massas.

Seguem aqui alguns textos desse livro para que você possam entender melhor o conceito;

“Nenhum sociólogo sério acredita mais que a voz do povo expressa qualquer ideia divina ou especialmente sábia e elevada. A voz do povo expressa a mente do povo, e essa mente é formada pelos líderes do grupo em quem eles acreditam e pelas pessoas que entendem a manipulação da opinião pública. É composto de preconceitos herdados, símbolos e clichês e fórmulas verbais fornecidas a eles pelos líderes ”.

- Edward L. Bernays, Propaganda


“A manipulação consciente e inteligente dos hábitos e opiniões organizados das massas é um elemento importante na sociedade democrática. Aqueles que manipulam esse mecanismo invisível da sociedade constituem um governo invisível que é o verdadeiro poder dominante de nosso país ”.

- Edward L. Bernays, Propaganda

Acho que já é possível entender como a opinião pública, em sua maioria, foi sendo moldada em relação ao que hoje entendemos como ser a melhor forma de educar nossos cães.

Eu sempre digo que não podemos nos tornar bons profissionais nessa categoria se não desenvolvermos nossa habilidade de compreender o comportamento humano. O estudo do comportamento humano traz respostas que nenhum treinamento na prática com cães poderia materializar, e isso acaba sendo a chave para a solução de muitos dos problemas que vemos hoje com nossos cachorros domésticos urbanos. Lembrem de cada cachorro vive com pelo menos um ser humano, e sem ele, nenhuma mudança acontece.

Por falar em mudanças, vamos fazer aqui um bom paralelo com a emoção. Quando eu falo sobre emoção e projeção eu falo exatamente daqueles sentimentos que afloram quando nos vemos de frente para um problema, ou seja, as respostas impulsivas e instintivas que temos diante de situações desafiadoras. No universo de comportamento canino, esses momentos acontecem quando uma família se vê diante de um problema sério com seu cão. Muitas vezes esse momento de reconhecimento é mascarado durante anos por desculpas e justificativas que permitem que o comportamento se torne cada vez mais forte.

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Vamos ver aqui alguns exemplos:

Um cachorro que se torna reativo com pessoas estranhas e possessivo com os donos não nasceu assim. Muitos desses casos acontecem com cães que foram criados pela mesma família, desde filhotes, e crescem mostrando pequenos sinais de respostas negativas como agitação e alerta constantes, latidos, postura defensiva e inabilidade de estar bem em seu próprio espaço, estando sendo fisicamente junto com algum membro da família. Muito desse comportamento é justificado como personalidade, brincadeira ou até mesmo amor e preferência por um membro da família. O momento de alerta, para a família, só acontece quando o cachorro finalmente ataca e morde alguém de verdade. Ainda assim é comum vermos as pessoas nessa situação, usando as mesmas justificativas anteriores para minimizar o valor da atitude desse cão. A emoção aqui é negação. Negar a realidade requer criar uma explicação paralela aonde qualquer outro estímulo ou elemento é responsável pelo ataque, mas nunca o cachorro.

Vejam como essa postura tem uma projeção interessante do comportamento humano em situações similares. Quantos de nós estamos prontos para assumir a responsabilidade e culpa por problemas reais que existem em nossas vidas? Quantos de nós não temos o hábito de sempre apontar o dedo para o outro, ou para alguma circustância que deve ser responsável pelo que está acontecendo conosco? É absolutamente mais fácil, mais confortável e nos exime da responsabilidade de ter que assumir o erro e mudar. Se assim nos sentimos, é natural que essa emoção seja projetada em nossos cães. O grande problema dessa atitude é que o resultado desejado nunca se materializa. Buscar justificativas externas até traz um conforto imediato mas jamais resolve o problema que vai continuar ali. É assim que muitos cães evoluem no processo negativo comportamental e assim vivem pelo resto de suas vidas, escondidos por trás dessa negação de real responsabilidade humana.

Em situações como essa vemos muito a questão da vitimização, que é super comum nos dias de hoje no universo humano. As pessoas imediatamente colocam o cachorro numa posição de vítima, aonde o argumento é sempre que ele está sofrendo, seja por saudade, seja porque foi privado de algum brinquedo, ou de algum outro privilégio. É como a criança, ou até mesmo o adulto, que se vê no direito de protestar e ter atitudes negativas porque não teve o que queria.

Eu poderia citar uma série de exemplos similares e todos terminariam na mesma conclusão: uma conduta e respostas baseadas puramente em emoções são, e sempre serão a condenação do indivíduo na equação. O mercado de serviços na categoria pet entende isso muito bem, e sabe, como poucos, jogar dentro dessa arena. Os apelos à nossa emoção estão espalhados em modelos de produtos e serviços que são direcionados à esse grupo de pessoas. Reparem que nas lojas a maior variedade de produtos é voltada para vestuário, diversão e conforto. Existem pouquíssimas opções de equipamentos de treinamento de qualidade, quando existem. Na arena de serviços, a maioria deles é oferecido sempre com ênfase em diversão e brincadeiras, e mesmo aqueles que trabalham com mais disciplina, não usam esses termos em seu conteúdo de divulgação. Tudo isso é feito em nome do marketing mais atraente para o negócio, ou seja, trabalhar com o que vende, mesmo que o resultado não seja o adequado.

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Vejam que, quando falamos de mercado, o grande elemento motivador é a possibilidade de lucro, ou seja, é preciso vender, e para isso cada um faz o que acha que deve, não necessariamente pensando nos cães. Eu entendo como o Brasil é um país aonde manter um negócio é um desafio e todos precisamos nos reinventar para sobreviver bem, porém, existe um limite necessário entre a ética e a necessidade que deve ser respeitado. Esse alerta é mais do que importante, especialmente na esfera de serviços. As empresas que trabalham com adestramento, comportamento canino, treinamentos, creches e hotéis, precisam ser honestas e falar abertamente sobre a realidade, do contrário as consequências se tornam muito graves. O público que consome esse conteúdo e eventualmente contrata esses serviços, assim o faz acreditando que terá bons resultados, e sem a real transparência de informações, isso não acontece. O problema maior é que o apelo emocional é tão grande, que mesmo sem os resultados, esse mesmo público continua convencido que está no melhor caminho, mesmo que para isso a solução seja aceitar que seu cachorro sempre terá problemas.

O ponto que eu quero chegar aqui é simples; é fácil manipular as pessoas pelo lado emocional. É fácil convencer o público de que todos os cães só precisam de carinho, brinquedos, liberdade e petiscos. É fácil demonizar o conceito de disciplina, afinal quem não gostaria de viver num universo aonde tudo é permitido sem jamais ter que assumir qualquer consequência? Essa é a projeção baseada no argumento moderno que o ser humano, hoje, pode ser o que quiser, pode fazer o que quiser, pode escolher a profissão que quiser e ainda assim vai ter sucesso. É exatamente a mesma ilusão. É a utopia do universo de infinitas escolhas, sem julgamentos e sem consequências. O conceito é o mesmo, apenas aplicado na vida e rotina com cães. Isso é perigoso e tem um preço muito alto, que na minha opinião, não é justo com as pessoas e muito menos com os cães.

Ser honesto no seu formato de negócio pode não te trazer fortunas, milhares de seguidores ou centenas de clientes, mas com certeza te dará a garantia de realmente estar ajudando quem te procura. Ser honesto e transparente significa saber equilibrar o racional e emocional da relação com os cães, e saber passar para o público as informações que realmente são verdadeiras. Esse é o valor verdadeiro que precisa ser revisitado e incentivado nos dias de hoje, e não a ilusão. Se você é profissional da área, pense sobre isso. Não tenha medo de enfrentar a máquina de manipulação. A batalha é longa e dura, mas poder ajudar pessoas é a maior das gratificações. Se você é apenas alguém que tem um cachorro, reflita sobre isso e veja que as soluções nem sempre vão acomodar as suas emoções, mas são elas o caminho de libertação para você e para o seu cão.